ENTREVISTA – IZA SALLES

Poderia descrever o tema de seu livro e como ocorreu a sua descoberta da figura trágica de Antonio Bemardo Canellas para os que ainda não conhecem o seu livro Um Cadáver ao Sol?

Por volta de 1980 tive oportunidade de ler dois documentos que contavam a mesma história: a da expulsão do primeiro dirigente do Partido Comunista Brasileiro, Antonio Bernardo Canellas. Um dos documentos, escrito pelo próprio Canellas, era o relato de sua viagem a Moscou, em 1922, como delegado do PCB no IV congresso da Internacional Comunista,. o segundo, escrito pelo partido, contava os motivos pelos quais Canellas fora expulso logo depois de retomar desta viagem. Os motivos? Em Moscou, dizia o PCB, Canellas não se comportara como um verdadeiro comunista. Questionara a direção do congresso, votara contra projetos bolcheviques e ousara apartear o camarada Trotsky. Enfim, comportara-se como o anarquista que, na sua essência, nunca deixara de ser. Por isso foi julgado em Moscou e no Brasil. Procurei, então, saber o que diferia um marxista de um anarquista. O livro é uma tentativa de explicar esta diferença. A pesquisa me permitiu uma outra descoberta: dos dez fundadores do PCB, oito eram de origem libertária. Sua adesão ao marxismo deu-se no contexto de atração que exercia na época a revolução russa de 1917. Como resultado, o movimento social, até então dominado pelos anarquistas, se cindiu. Em seguida, veio um longo período do domínio marxista. Minha tese, a partir desta constatação, é que onde havia luz (do anarquismo),fez-se as trevas (do marxismo). Mas a luz está voltando.

De certa forma Canellas seria uma personagem que sintetizaria em sua história tudo o que de errôneo e equivocado passou a ocorrer quando se passou a adotar hegemonicamente uma postura autoritária nas esquerdas, não?

Exatamente. Me chamou atenção o fato de que, o que aconteceu com Cannelas no início do comunismo -seu julgamentos em Moscou e no Brasil e sua expulsão do PCB- se reproduziria depois, sob formas infinitas e piores, no mundo inteiro. O partido tentou matar Canellas ‘politicamente “, e no prefácio do livro “Processo de um traidor” afirma que ele está morto para a classe operária. Mas, pouco depois, na URSS de Stalin, o partido passou a matar fisicamente os adversários dentro do próprio partido. Gosto sempre de lembrar que dos 56 principais bolcheviques que tomaram o poder em 191.7, dez morrem antes de Stalin.Dos 46 restantes, 30 foram assassinados por ele, 3 se suicidaram para escapar dele e 3 foram perseguidos por ele. Apenas sete sobreviveram, como seus aliados. E os comunistas do mundo fingiam não ver o que se passava.

E como se desenvolve em resumo a história de Canellas ?

Bem, Canellas é um tipógrafo de origem libertária que se dedica, desde muito jovem a dirigir jornais operários. Entusiasmado com a revolução russa, converte-se ao marxismo. Nafundação do PCB em 1922 é escolhido membro da comissão central e representante no IV congresso da’ IC. No decorrer dos debates em Moscou, vota contra alguns projetos em discussão. Ora, tudo era decidido na cúpula do partido russo e da Internacional, e cabia aos delegados apenas aprovar o que ali fora decidido. Mas a conversão de Canellas ao comunismo era recente. Ele ainda não havia assimilado o comportamento da maioria. Dizendo estar exercendo seu direito de opinião, vota de acordo com suas idéias e chama atenção do plenário sobretudo quando ousa pedir um aparte a Trotsky, desaprovando o modo autoritário como o dirigente bolchevique conduzia a discussão da crise do partido francês. Ao fim do aparte, Canellas é vaiado, e ao fim do congresso, julgado em Moscou por uma comissão de estrelas, entre elas Gramsci e Souvarine. Imagine, um jovem de 24 anos -dos mais jovens do congresso, fazendo esta confusão. Era mesmo um libertário.

Lendo seu livro fica-se com a impressão de que haveria um desilusão da autora com o marxismo-leninismo e que a descoberta do personagem histórico Antonio Canellas serviu como ilustração perfeita para o que seria passível de crítica na esquerda marxista e autoritária. Isto realmente ocorreu? Em caso afirmativo poderia descrever alguma coisa de sua trajetória pessoal neste sentido?

Exato. Você acertou na mosca. Minha trajetória política é parecida com a dos jovens da minha geração: participei da luta contra a ditadura, fui presa e julgada em dois processos. Os jovens de então, muito críticos ao que se passava na URSS, aderiram ao ‘joquismo” marxista por acreditarem que, chegando ao poder, fariam tudo diferente. Não fariam. Um século antes, Proudhon e Bakunin já haviam afirmado que o marxismo nunca libertaria o homem porque sua essência é autoritária. Mas quem lia Proudhon e Bakunin naqueles anos? A pesquisa para o livro me fez compreender muita coisa. Depois, passei também a descrer da insurreição que pregávamos na época como forma de luta: o foquismo e Cuba me ensinaram que ela sempre termina com um tirano no poder. Prefiro o processo democrático. Cito no meu livro o discurso do operário anarquista Synval Borges diante do cadáver do primeiro companheiro morto pelos comunistas. Era a primeira vez, dizia ele que no Brasil a ambição de uns poucos armava o braço de um trabalhador contra outro. E, concluía: “Se é esta a emancipação prometida pelos comunistas, prefiro a tirania burguesa que, pelo menos, permite que os acusados se defendam “. Concordo com ele. A democracia é ainda o sistema no qual as idéias libertáriaspodem ser discutidas e aprimoradas. Qual outro?

Há alguns detalhes que são significativos na história de Canellas e que independem de sua narrativa biográfica: o episódio da desilusão do revolucionário que foi fuzilado ao amanhecer, os altos valores confiscados à aristocracia e à burguesia russas e que passam a financiar os PCs e seus simpatizantes, os anarquistas espanhóis que tentaram libertar seus companheiros russos durante um congresso da IC, os 21 Princípios da Internacional Comunista, o choque entre Canellas e Trotsky e a reação dos camaradas do PCB ao saberem que o Partido não havia conseguido se tomar membro da IC… Poderia comentar rapidamente estes temas, ou ao menos alguns, dentro do contexto da história de Canellas e do conflito Socialismo Libertário x Socialismo Autoritário?

Muitas vezes me comovi nas minhas pesquisas. Uma delas foi ao imaginar o discurso daquele indefeso libertário para seus companheiros de cela pouco antes de ser fuzilado pelos bolcheviques apenas porque era anarquista. Era o momento em que os anarquistas estavam sendo aniquilados na Rússia porque haviam se tornado a principal força de resistência ao governo. Mas ninguém no exterior sabia do que se passava em Moscou -e essa desinformação durou décadas. Tanto que o espanhol Laval e seus três companheiros convidados por Lênin em 1921 a participar do 111 congresso da IC -a estratégia era atrair os anarquistas para as fileiras comunistas- só ficam sabendo em Moscou que seus companheiros russos, inclusive Volin, estavam presos. Os anarquistas representavam, como afirma o bolchevique Lozovsky da tribuna no congresso seguinte, “a velha ideologia adversária do marxismo”. Essa frase me agrada porque é o reconhecimento do anarquismo como principal força opositora do marxismo. Sobre o “ouro de Moscou” não posso me furtar a uma comparação com a atual crise do PT: o camarada Thomas, logo no primeiro capítulo, sai de Moscou com uma mala cheia de jóias e pedras preciosas para pagar o “mensalão” dos comunistas europeus.

Os 21 princípios serviram à Internacional para impor sua tirania aos demais partidos. Ali estavam as regras que eles deveriam seguir fielmente. Os companheiros de Canellas no PCB ficam aflitos quando a IC não reconhece o partido como membro porque haviam aderido imediatamente e sem questionamento a estes princípios. Sobre o choque de Trotsky e Canellas, falei acima, e é curioso que Trotsky comece a cair em desgraça meses depois de Canellas ser expulso do PCB.

Em sua opinião em que consiste a importância do Anarquismo para a libertação social?

Termino o livro com uma frase de George Woodcock comparando o marxismo a um curso d’água que corre em direção ao seu destino e o anarquismo a um fio d’água que de vez quando vem à tona, quando acontecem rachaduras no solo social. Ele acredita que o anarquismo não morre nunca Eu também. Acho que todos os movimentos libertários do século XX-movimento negro, das mulheres, homossexuais, movimento ecológico, de defesa dos direitos humanos -são manifestações renovadas das idéias libertárias dos séculos anteriores. Outra riqueza do anarquismo, é sua multiplicidade. Sua força e fraqueza, diz Paul Avrich ao descobrir que a resistência em Moscou era formada por todas as tendências libertárias existentes naquele momento. O dia em que tentarem amarra-lo numa única camisa de força, ele morre. Ninguém até hoje conseguiu. Pode ser que a multiplicidade dificulte a ação, mas o objetivo do anarquismo não é a tomada do poder. É garantir a liberdade, e o bem estar de todos, como diz Kropotkin.

Gostaria de acrescentar mais alguma coisa?

Sim. Que Canellas morreu em 1936, de tuberculose contraída nas prisões de Getúlio Vargas. Numa das últimas páginas do livro pedi que sua família entrasse em contato comigo. Todos os Canellas que eu contatara não eram seus parentes. Duas sobrinhas me procuraram mal saiu o livro. Por casamento e circunstâncias diversas, haviam mudado o sobrenome. Eram adolescente quando ele morreu, mas não haviam conseguido esquece-lo, por causa de sua história e da admiração que tinham por ele. E me falaram de sua morte. As duas acham que a morte do filho único, um adolescente, no mesmo ano, também contribuiu para o fim. Quero acrescentar ainda que a melhor coisa que me aconteceu depois de publicado o livro foi conhecer vocês, os jovens libertários que tentam levar à frente as pesquisas sobre aqueles belos anos e sobre as idéias anarquistas. Eu não tinha idéia de que vocês existiam. Deveria suspeitar, já que afirmo que a anarquismo não morre nunca. Vocês existem, e isto me deixa feliz.

8 Respostas to “Entrevista com Iza Salles”


  1. Este livro UM CADER AO SOL, foi o melhor livro que ja li.


  2. Um dia quero conhecer Isa Salles.

  3. Cassiana Caparelli Says:

    Estou apaixonada pelo livro, pela ESTÓRIA (gostaria de ainda estar certa ao escrever esta palavra), apaixonada pelo Canellas, apaixonada e sofrendo pelo Brasil e aprendi amar esta bela Senhora Iza Salles. A Senhora mudou meus rumos, este livro me libertou!
    Cassiana Caparelli – Brasília DF

  4. Claudia Valeria de Gusmão Sá Says:

    Um dos melhores livros que li ultimamente, parabenizo Iza Salles pela pesquisa muito esclarecedora.

  5. Daniel Says:

    Excelente livro, com vastíssima pesquisa histórico-bibliográfica, que mostra como, até mesmo para uma jornalista, existem limites, intransponíveis, inerentes à busca por um passado nem tão remoto mas pouco remexido. Ademais, é dotado de maravilhosos projeto gráfico e capa.

    Pelo que me lembro, o único pecado está em duas ou três passagens nas duas “orelhas”. Penso que a Ediouro poderia ter sido menos reducionista ao descrever certos lances que encarnam o mote da obra.

    Um fraterno abraço,


  6. Um sopro de corajosa verdade sobre sobre a espessa camada de mentira e dissimulação que encobre os crimes dos partidos comunistas em toda parte. Um alívio saber que existam autores, pesquisadores e estudiosos que produzem e compartilham linhas independentes de pensamento. Pessoalmente cheguei a ter a triste certeza que a filosofia estava morta, prisioneira da ideologia, sobretudo a ideologia de esquerda e sua loucura autoritária… Feliz hoje!


  7. Um dos mais legais livros que li. Um retrato fiél da época.

  8. Gilda Sodré Says:

    Excelente entrevista! Parabéns!

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