Nesse 30 de abril lembramos com saudades que, há um ano atrás, a recém-iniciada pandemia de Covid19 nos levou o companheiro Sérgio Luis Monteiro Mesquita (1963-2020). O Núcleo de Pesquisa Marques da Costa (NPMC) homenageia esse valoroso companheiro através de um texto inédito escrito por seu coordenador, jornalista Milton Lopes, ainda sob a intensa emoção e perplexidade daquela terrível notícia. Deixamos aqui nosso caloroso abraço a Angélica, viúva do Sérgio, e demais familiares e amigos.

“1º de maio de 2020: Celular toca.Um compa do outro lado me passa uma informação porrada. Faleceu, vítima de Covid19, nosso estimado companheiro Sérgio Mesquita.A primeira reação foi perguntar por que? Por que os bons? Vaso ruim não quebra? Sérgio deixa um grande vazio para os que o conheceram e ganharam com sua convivência. Ali estava alguém com um bom humor, uma tremenda capacidade de pesquisar e expor tópicos da história anarquista como ninguém, isto a par de uma modéstia inigualável no que diz respeito a vaidades, e até mesmo a títulos acadêmicos,a que teria pleno direito.

Não vou relembrar as várias palestras e textos com que nos brindou. Quem teve a oportunidade de ouvi-lo ou lê-lo, bem como acompanhar sua participação no NPMC, de quem foi entusiasta e secretário, sabe do que estou falando. Prefiro ressaltar aqui algumas pequenas lembranças pessoais, que ressaltam sua figura humana.

Não lembro exatamente quando conheci o Sérgio, mas sei que foi lá pelo início dos anos 2000. Compartilhamos diversos plantões aos sábados na Biblioteca Social Fábio Luz (BSFL) e, dali, saíram inúmeros papos sobre tudo que se possa imaginar em termos da história e das ideias libertárias. Uma vez o Sérgio teve de fazer uma exposição sobre Francisco Ferrer e me ligou. Não me recordo porque me agitei e lhe disse: “Sérgio, não deixe de ressaltar que Ferrer era anarquista”. E ele me respondeu na maior calma: “Claro,pode deixar”.

Os plantões na BSFL tiveram algumas facetas humorísticas, como no dia em que nós dois chegamos por lá e ambos havíamos esquecido as chaves em casa, sendo ajudados por uma compa que lá se encontrava. Outra vez ao vê-lo procurando por um livro, perguntei do que se tratava e ele me disse estar pesquisando para ver se encontrava algum livro de um antigo pensador oriental chamado Li-Bai, que ele apreciava e que teria sido mesmo conselheiro de um imperador da China.Brincando, ainda que achando que ele talvez se irritasse, disse: ‘Li-Bai deve ser de libação. Ele devia aconselhar o imperador totalmente bêbado”.Para minha própria surpresa, Sérgio achou muita graça. Curiosamente uma afirmação que chegou a irritá-lo um pouco no início foi a de que ele era muito parecido fisicamente com o escritor Lima Barreto,de quem ele era profundo conhecedor da vida e da obra. Mas mesmo essa brincadeira foi logo aceita por ele, ao verificar que era altamente elogiosa.

Por sinal, a última vez em que estive com o Sérgio foi quando ele veio trazer para mim um livro sobre Lima Barreto de que havia participado com dois outros professores e em que passamos uma tarde inteira papeando. Percebo agora, embora nem desconfiássemos na época, que foi uma despedida.

Um último episódio a relembrar. Aproximava-se um Natal e um grupo espírita que alugava espaço no CCS-RJ para letramento de crianças desfavorecidas, encenou um auto de Natal.Companheiro nosso ligado à religiosidade foi assistir e voltou revoltado. “Está tudo errado, não foi nada disso”. E veio então a resposta do Sérgio, na maior seriedade: “Não tem importância, não seja intolerante. Importante é levar o amor de Jesus ao coração das crianças”.Foi só então que descobri o Sérgio cristão, que nunca havia protestado contra minhas tiradas antirreligiosas.Ele era um cristão no verdadeiro e melhor sentido da palavra.

Professor negro da periferia, trabalhando sempre em prol de seus alunos carentes,na Baixada Fluminense (Caxias) na Escola Assis Chateaubriand,Sérgio dedicou-se inteiramente a eles, a ponto de ser por eles chamado carinhosamente de “Tio Sérgio”.

Companheiro Sérgio, Presente!

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“NÃO HÁ EXCEÇÃO, TODOS PAGAM O SEU TRIBUTO”

Com essa expressão, o “detento-coveiro” do cemitério São Francisco Xavier apresentava ao repórter do diário A Rua1 a situação macabra e catastrófica daquela necrópole, atulhada com centenas de cadáveres insepultos em adiantado estado de putrefação. Homens e mulheres de todas as idades e condições sociais estavam espalhados e amontoados pelas alamedas do cemitério, muitos ainda nos caminhões que os traziam de todas as partes da cidade, especialmente do Centro e da região circunvizinha. A maioria, no entanto, era de trabalhadores e trabalhadoras pobres que morriam às centenas vítimas da gripe espanhola, e que muitas vezes as famílias jogavam nas ruas pois a assistência não os vinha buscar e estes apodreciam naquele início de verão carioca.

A contagem de sepultamentos nos cemitérios cariocas, realizada pela polícia após o dia 12 de outubro de 1918, e publicada diariamente no diário Correio da Manhã até o dia 16 de novembro, indicava 14.449 mortos em 37 dias, uma média de 391 mortos por dia. Cabe ressaltar que entre 21 e 28 de outubro, auge da epidemia, foram sepultadas cerca de 6.400 pessoas na Capital (1.060 apenas no dia 25/10!), com uma média diária de 800 mortes por dia. Obviamente uma parcela desses óbitos não era devida à pandemia, mas por outro lado, centenas, talvez milhares de pessoas não foram contabilizadas nessas listas seja pela desorganização das administrações dos cemitérios; a impossibilidade de contar todos os sepultados nas valas comuns; uma eventual censura das autoridades policiais e governamentais em relação ao enorme número de mortos e, provavelmente, as dezenas ou, quem sabe, centenas de corpos em decomposição que foram sepultados “clandestinamente” pelas famílias e vizinhos nas favelas e nos subúrbios abandonados pelas autoridades.

O cemitério São Francisco Xavier, de propriedade da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, foi a necrópole que de longe recebeu o maior número de enterramentos de vítimas da gripe espanhola nos meses de outubro e novembro de 1918. Na contagem diária de sepultamentos citada acima, entre os dias 12 e 30 de outubro de 19182, haviam sido realizados 5.132 sepultamentos no cemitério S. Francisco Xavier, de um total de 9.408 realizados no então Distrito Federal. Ou seja, somando-se ainda os 59 sepultamentos no cemitério de São Francisco da Penitência e os 66 na Ordem do Carmo, também no Caju, os 5.257 enterramentos representaram bem mais que a metade (56%) dos realizados na cidade.

A seguir estão transcritos e atualizados na ortografia atual quatro artigos publicados no diário carioca A Rua, nos dias 21 e 25 de outubro e 1º de novembro de 1918, com notas e imagens por mim incorporadas. Tratam-se, segundo afirma o repórter autor das matérias, das únicas descrições jornalísticas naquele local durante aquele trágico período quando a epidemia atingiu o seu ápice e a situação naquela necrópole faria uma obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, parecer um “filme água com açúcar”.

O anônimo jornalista (ou jornalistas…) d´A Rua aborda de forma nua e crua a desorganização total e completa da administração da Santa Casa naquele cemitério e a intervenção governamental que começou a colocar as coisas nos eixos, graças ao trabalho extenuante e perigoso de dezenas de detentos das casas de Detenção e de Correção do Rio de Janeiro. O cenário horripilante de centenas de corpos em decomposição amontoados, que produziam uma atmosfera quase insuportável aos olfatos ainda não acostumados, bem como as milhões de moscas que atazanavam os que ali trabalhavam, e as centenas de urubus circulando no céu, ávidos da abundante oferta de alimentos concentrada naquele local.

O repórter não se furta a criticar duramente os agentes de polícia lotados naquele local, que ao procederem como de costume com um homem idoso que passava em frente ao cemitério, exigindo que este se “voluntariasse” ao serviço de abertura de covas, este tendo argumentado que convalescia da gripe, o humilham de forma degradante lançando-o sobre uma pilha de cadáveres.

As práticas usuais da Brigada Policial (polícia militar) e dos agentes de polícia (civil) para com a população mais pobre, caracterizadas ontem, hoje e sempre pela violência, intimidação e humilhação dos de baixo em benefício dos de cima, se fizeram presentes e de forma acentuada durante a epidemia, com diversas acusações de engajamento à força de trabalhadores pobres para trabalhar nos cemitérios, bem como a continuidade da repressão ao movimento operário, desta vez quando esse buscava através dos sindicatos minorar o sofrimento da população.

Uma das matérias apresentadas talvez seja a única descrição do sepultamento dos 16 marinheiros do USS Pittsburg, que perdeu 58 de seus 830 marujos vitimados pela gripe durante sua permanência no Rio de Janeiro.

Essas narrativas chocantes constituem documentos históricos importantes de uma das mais trágicas quinzenas da história da cidade, quando a pandemia de gripe dizimou milhares de pessoas de todas as idades, a maioria dessas, filhos e filhas da classe operária.

Renato Ramos

Núcleo de Pesquisa Marques da Costa/RJ

Notas:

1O diário A Rua foi fundado em 1914 pelo político e romancista Viriato Correia (1884-1967). O jornal foi o primeiro na cidade a admitir uma repórter, a jovem mineira Eugênia Brandão (depois Eugênia Álvaro Moreyra – 1898-1948) então com 16 anos, uma das pioneiras do feminismo e líder sufragista brasileira, que nos anos 1920-30 participou ativamente do Movimento Modernista e militou no PCB.

2Correio da Manhã, 31/10/1918.

O Aspecto de um Cemitério

Centenas de cadáveres insepultos – A influenza dizima as guarnições americanas

            O aumento da mortalidade o a excepcional desorganização dos serviços de enterramento, entregues a um odiosíssimo monopólio da Santa Casa de Misericórdia proporcionaram este quadro sensacional e inédito.

            Centenas de cadáveres espalhados por toda a cidade e insepultos há três, quatro, cinco ou mais dias, por falta de caixões mortuários e condução que os levassem à última morada.

            As proporções desse quadro fantasticamente tétrico, levaram as autoridades policiais a tomar medidas urgentes, de acordo com as autoridades sanitárias, no sentido de fazer desaparecer a anomalia que ameaçava mais ainda a saúde da população.

            E começou a remoção feitas às carreiras, a trouxe-mouxe, sendo levados sem maiores formalidades, para as necrópoles da cidade, em caminhões, na maior promiscuidade, em caixões ou sem eles, vestidos ou nus, cadáveres de pessoas dos dois sexos, indigentes e até mesmo pessoas qualificadas.

            Essa providencia parecia ter resolvido o grave problema, tal não se deu porém.

NÃO HÁ SEPULTURAS PARA TANTOS DEFUNTOS

            Ao conhecimento da “A Rua” chegou à informação do que os cadáveres das vítimas da “hespanhola” estavam sendo dados à sepultura normalmente, à medida que iam chegando nos cemitérios.

            Essa notícia era de todo tranquilizadora.

            Íamos, pois, ficar livres do grande perigo do alastramento da epidemia em virtude da putrefacção ao lar livre das inúmeras vítimas do mal.

            Não obstante essa informação ser oficiosa, quisemos verificar “de visu” a sua veracidade para o que destacamos um dos nossos companheiros para o cemitério de S. Francisco Xavier.

CENTENAS DE CADÁVERES AMONTOADOS AGUARDAM INUMAÇÃO

            Ao chegarmos ao cemitério tivemos desde logo a impressão de que “aquilo” estava a transbordar de defuntos.

            Na rua, quatro ou cinco carros estacionavam com os seus caixões mortuários, à espera da “vez”.

            Na entrada, em frente a Secretaria, alguns caixões enfileirados e homens suarentos e chorosos, parentes e amigos dos mortos, tinham a fisionomia tomada de uma profunda tristeza e não menos justificada surpresa diante do quadro horrível que os cercava.

            A esse tempo chegava um caminhão conduzindo dezesseis caixões de marinheiros do “Pittsburg”.

            As pessoas que a isso assistiam entreolhavam-se como que tornadas do maior pavor: dezesseis marinheiros americanos do “Pittsburg” não haviam escapado à matança da “hespanhola”!

            Penetramos na Secretaria depois de uma pequena observação pelo local.

            – O sr. administrador?

            É aquele homem gordo que ali está – disse-nos um dos presentes, apontando-nos um cavalheiro que sentado à uma mesa, escrevia, rodeado de algumas dezenas de pessoas.

            Aproximamo-nos e, diante da atrapalhação do funcionário, que procurava atender a todos a um tempo, contivemos o nosso avanço.

            Alguns minutos depois criávamos ânimo e dirigíamos a palavra ao administrador do cemitério, que por um gesto de cabeça deu a entender ser impossível nos atender.

            – Queríamos ao menos que nos informasse quantos cadáveres deram entrada até hoje.

            – Nem eu sei disso.

            – E hoje?

            – Calculo em 300 o número de entradas desde pela manhã até agora.

            Rodamos nos calcanhares para logo à saída toparmos com alguns indivíduos de roupa de zuarte. Eram presos da Detenção que se entregam ao serviço de enterramento, na falta de coveiros.

            Falamos a um rapaz inteligente que reclamava indignado contra a desumanidade por que estavam sendo tratados.

            Ali se encontravam no horrível serviço de abertura de covas e sepultamento de cadáveres, sem que se lhes fosse fornecido o nenhum medicamento, preservativo, estando como estão sujeitos ao perigo de uma infecção.

QUASE TODOS OS CADÁVERES ESTÃO EXPOSTO AO TEMPO!

            Algumas palavras trocamos com esses detentos, entre os quais havia um de nome João dos Santos, condenado a 7 1/2 meses de prisão e que se achava preso a 10 meses por não ter o juízo competente expedido o necessário alvará do soltura – sendo-nos apontado o local onde se achava o maior número de cadáveres, ao fundo do cemitério, à direita.

            Antes, porém, a nossa atenção foi despertada por alguns caixões alinhados fora do Necrotério do estabelecimento.

            O mau cheiro que daí se desprendia era estonteante.

            Não obstante, avançamos até a porta.

            Dentro inúmeros caixões mortuários dispostos de certo modo confuso enchiam a “morgue”.

            Em um deles havia um cadáver de homem robusto trajando de preto, aliás caixão do 2a ou 3a classe.

            O cadáver, devido ao tempo em que se achava insepulto inchara e tomara a tampa do caixão com os braços, que se abriram em sentido horizontal e nossa posição se manteve, como que a dirigir aos donos da casa um solene protesto…

            Esses cadáveres eram os que a mais tempo se achavam no cemitério.

            A sua decomposição era adiantadíssima, provocando tonteiras em quem por ali passava.

AO DEPÓSITO AO AR LIVRE! UM ASPECTO HORRIPILANTE — “NÃO HÁ EXCESSÃO, TODOS PAGAM O SEU TRIBUTO”.

            O desejo do verificar a veracidade da informação que nos fora dada de que muitos cadáveres permaneciam insepultos no fundo do cemitério, fomos até lá.

            Um quadro muito mais impressionante e horrível do que supúnhamos deparou-se-nos.

            Algumas centenas de caixões, forrados uns, outros só em madeira, ali estavam atirados, formando pilhas irregulares, entremeando cadáveres enrolados numa colcha, lençol, cobertor e mesmo completamente desprovidos da menor peça de roupa!

            Que era aquilo, Santo Deus! – exclamamos apavorados.

            Um coveiro que estava próximo animou-nos:

            – Não se assuste. É assim mesmo e o senhor não viu nada. Temos enterrado muito mais do que aqui está.

            – E são só indigentes os que aqui estão?

            – Qual nada. Não há exceção, todos pagam seu tributo…

            – Não há de ser tanto assim…

            – Como diz? Não acredita? Vamos até ali que eu lhe mostro o ator Olympio Nogueira1 em carne e osso. E o senhor sabe que esse ator era pessoa conceituada, foi um artista popular e inteligente.

            A afirmação do condenado transformado em coveiro impressionou-nos mais ainda.

            E este continuou…

            – Não é só o ator Nogueira… Tem gente muito boa aqui, doutores e homens de dinheiro. Quer ver? Acompanhe-me.

            E o homem procurava oferecer-nos a prova provada do que afirmava. Escusado será dizer que declinamos mais que depressa da honra.

            O ar estava empestado, a cabeça doía-nos, parecendo que ali ficaríamos também, vitimados por uma síncope…

            Isso levou-nos a uma retirada prudente.

            Pelo caminho procurávamos calcular o número aproximado de mortos que víamos assim atirados em tão grande promiscuidade.

            Só pensar naquele quadro macabro fazia-nos estalar a cabeça, enchendo-nos de horror…

COMO CHEGAM À NECROPOLE OS CADÁVERES

            De instante a instante chegam ao cemitério de S. Francisco Xavier caminhões das repartições públicas pejados de corpos.

            Estão eles em caixões e alguns há que têm a cobrir-lhes as carnes apodrecidas um pano qualquer.

            Os que ficam no fundo estão nus.

            São homens e mulheres que se misturam entristecedoramente.

            Alguns cadáveres têm a deformação motivada pela posição que traziam no caminhão: – estavam curvados ou com os braços espetados para o ar, curvos para diante, para as costas…

            Apesar de ser altamente contristador o espetáculo do cemitério, muitas pessoas ali haviam, às quais só havia a curiosidade…

100 CONDENADOS FAZEM O SERVIÇO DE ENTERRAMENTO

            Desde sábado que os trabalhos de transladação dos cadáveres e respectivo enterramento está sendo feito por 50 hospedes do Sr. Meira Lima2 e igual número da Correção.

            Esses pobres homens têm prestado reais serviços e, não obstante, a maneira desprezível por que são tratados, mostram-se obedientes e desejosos de atender com a maior presteza ao ingrato mister que lhes está afeto.

            O governo não pôde esquecer esse grande serviço de míseros presidiários aos quais não poderá ser regateado um prêmio que compense o seu grande sacrifício.

FALECEM 10 MARINHEIROS DO “PITTSBURG”3 — A CERIMÔNIA DE ENTERRAMENTO FOI TOCANTE

            Nada menos de dezesseis casos fatais ocorreram a bordo do cruzador couraçado norte-americano “Pittsburg” surto em nosso porto.

            Hoje, às primeiras horas da tarde, efetivou-se o enterro desses soldados.

            Dispostos os dezesseis caixões num autocaminhão, seguiu o cortejo fúnebre paia o cemitério do S. Francisco Xavier, formado de uma companhia de guerra e de companheiros dos mortos.

            À frente, seguiam dois marinheiros empunhando o pavilhão nacional americano e do navio, acompanhados da companhia de guerra comandada por oficiais, o coche fúnebre improvisado e por fim grande parte da guarnição do “Pittsburg”.

            No cemitério aguardavam a chegada do cortejo o sr. almirante Caperton4, comandante da divisão em operações na América do Sul, que se fazia acompanhar do seu estado maior; comandante e oficialidade do “Pittsburg” e Mr. Mounsem, cônsul geral dos Estados Unidos, em exercício.

            Um oficial vai entender-se com o administrador do estabelecimento- e é-lhe informado de que as dezesseis covas “encomendadas” ontem, haviam sido ocupadas por outros defuntos.

            Houve entre os oficiais americanos visível descontentamento.

            Afinal novo local foi escolhido para o sepultamento dos marinheiros do “Pittsburg”, à direita, próximo à porta principal da necrópole. O cortejo avançou até aí, sendo procedido às formalidades usadas em tais casos…

            Um oficial, pastor protestante, oficiou, sendo ouvido por todos os militares no mais absoluto silêncio e de cabeça baixa.

            Em seguida, foram prestadas as honras militares: três descargas de carabina, toques de corneta e, estava finda a homenagem fúnebre.

            Os caixões dispostos em três pilhas foram cobertos pela bandeira americana, ficando guardados por quatro soldados e um oficial, enquanto os detentos procediam à abertura das sepulturas.

Jornal A Rua, # 287, 21 de outubro de 1918

 

Notas:

1Olympio Nogueira nasceu em Campos dos Goytacazes em 22 de junho de 1878. Era cantor, ator, violinista e compositor. Amigo de Ernesto Nazareth, recebeu desse em 1913 uma homenagem através do tango Carioca (https://www.youtube.com/watch?v=0gxnIj1p1v4), que fez estrondoso sucesso. Era muito popular por encenar Jesus no drama bíblico O Mártir do Calvário, estreado em 1902, e que foi apresentado continuamente durante muitos anos. Morreu no dia 18 de outubro vítima da gripe (Fonte: https://www.ernestonazareth150anos.com.br/Chapters/index/347).

2Coronel Arthur de Meira Lima, administrador da Casa de Detenção desde meados da primeira década do século XX, acusado reiteradamente ao longo dos anos de dirigir um verdadeiro inferno, onde tanto presos comuns como presos políticos viviam em condições sub-humanas.

3O USS Pittsburg tinha uma tripulação de 829 homens, e patrulhava o Atlântico Sul sob o comando do Capitão George B. Bradshaw. No dia 9 de outubro, 92 casos da gripe foram reportados no vaso de guerra e, no dia 14, a tripulação foi assolada por 644 casos (77% da tripulação). No dia 31 de outubro, 58 tripulantes haviam morrido vitimados pela gripe (7% da tripulação).

4Rear Admiral William Banks Caperton (1855-1941), assumiu o comando nas forças navais no Atlântico Sul em 1916. Participou da guerra Hispano-americana em 1898-99 e comandou diversas intervenções militares norte-americanas como a tomada de Vera Cruz (México, 1915), a invasão do Haiti (1915-16) e a repressão a Revolução de Santo Domingo (República Dominicana, 1916). Foi um ativo instrumento da política norte-americana do Big Stick, de sucessivas intervenções militares na América do Sul, Central e Caribe (Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/William_Banks_Caperton).

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Olympio Nogueira (22/06/1878-18/11/1918)

Fonte: https://www.ernestonazareth150anos.com.br/images/view/158

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Coronel Arthur Meira Lima, administrador por décadas da Casa de Detenção do Rio de Janeiro (Fonte: jornal A Crítica, de 14/08/1930)

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U.S.S. PITTSBURGH, na Baía de Guanabara, em 1917 ou 1918 (acervo Naval History and Heritage Command)

 

tripulacao

A bordo do U.S.S. PITTSBURGH, no Rio de Janeiro, em 1918. Da esquerda para a direita: Tenente-comandante H.M. Lammers, Sr. Hélio Lobo (Secretário do Presidente da República), Inspetor médico Karl Ohnesorg, Almirante W.B. Caperton, e dois não-identificados (Naval History and Heritage Command)

https://www.history.navy.mil/content/history/nhhc/our-collections/photography/numerical-list-of-images/nhhc-series/nh-series/NH-46000/NH-46897.html

UMA CENA MACABRA NO CAJU

Cadáveres insepultos nas ruas há mais de seis dias

            A situação criada pela epidemia ainda não se modificou, continuando a cidade com a sua vida alterada e a população presa da mesma comoção. Se a epidemia parece ter declinado no centro da cidade, aumentou nos subúrbios onde há falta de postos de socorros e impera a fome. A situação pode-se, portanto, dizer ser quase a mesma dos dias anteriores, a cidade com pouco movimento, falta de transportes e os estabelecimentos comerciais com os negócios paralisados.

O ASPECTO TÉTRICO DO CEMITÉRIO DO CAJU

            Voltamos hoje a visitar o cemitério de São Francisco Xavier, o cemitério do Caju, como é mais conhecido pelo povo.

            Anteontem “A Rua” deu uma impressão rápida de uma visita a esse cemitério, narrando com fidelidade a cena macabra que um dos seus auxiliares presenciou, uma cena inédita e que só um homem como o Sr. Miguel de Carvalho1 nos poderia proporcionar. Centenas e centenas de cadáveres de homens, mulheres e crianças uns nus o outros vestidos ou embrulhados em lençóis, formando pilhas, jaziam ali a espera que os sepultassem.

            Tão macabro era o quadro que se presenciava, tão revoltante e ignominiosa a desídia e o descaso do Diretor da Santa Casa que o próprio Ministro da Justiça, profundamente impressionado, teve o ato enérgico de mandar ocupar militarmente o cemitério, chamando a si a sua direção.

            Assim, “desde ontem, o serviço de enterramentos começou a normalizar-se, estando empregados nessa tarefa 50 presos da Casa do Detenção e vários trabalhadores contratados à razão de 15$000 por cabeça.

            Dirige o serviço o Capitão Diniz que tem sob suas ordens 150 praças da Brigada Policial.

            Embora tenha sido ingente o esforço empregado por todo esse pessoal à hora em que estivemos hoje no Caju, se a cena que presenciamos não foi igual à que assistimos na primeira visita, pouco lhe ficava atrás.

            A diferença era só no número de cadáveres. O quadro era o mesmo, macabro e impressionante. Dezenas e dezenas de homens armados de alavancas, picaretas e pás, abriam covas, vendo-se a terra revolvida numa extensão e largura do dezenas e dezenas de metros. Um fétido insuportável que partia de todos os cantos do cemitério empestava o ar, atraindo os corvos e urubus que lá em cima, a uns cem metros de altura, cortavam o espaço a descrever círculos, prontos a se aproveitarem do primeiro descuido daquela gente…

            De longe, presenciávamos tão impressionante quadro. O soldado que nos serviu de cicerone, como nos mostrássemos horrorizados, ele que já se habituara, disse-nos:

            – Isso não é nada. Vamos até lá. Perto o senhor verá melhor…

            Encorajamo-nos. Levamos o lenço ao nariz e seguimos.

PILHAS HUMANAS

            Aquele ar empestado, o fétido cada vez mais insuportável, à medida que nos aproximávamos, não parecia incomodar o soldado que aspirava tranquila e despreocupadamente o ar. Eis-nos chegados. Um quadro horrível, indescritível se nos deparou. A uns 15 metros, ao lado direito, vimos uma massa multicor, predominando o negro e o branco.

            Era uma pilha de cadáveres. Nus, seminus, envoltos em lençóis e vestidos, gente de ambos os sexos, em posições impressionantes, encolhidos uns e tesos outros, numa confusão horripilante, ali aguardavam sepultamento. Roxos. completamente roxos, os corpos, mal se podia diferençar a cor das infelizes vítimas da gripe, que o relaxamento criminoso do Sr. Miguel de Carvalho, tanto tempo os deixara em abandono. Eram cadáveres de 3, 4, 5 e 6 dias. O policiai informou-nos que eram indigentes.

            Metros distante, viam-se algumas dezenas de caixões, cujo aspecto exterior, ricamente confeccionados, nos deram a convicção de se tratar de cadáveres de pessoas ricas. Já estavam ali há dias e alguns arrebentaram, saltando as tampas, deixando aparecer o cadáver, desmesuradamente inchado.

NA VALA COMUM

            A todo instante, os sentenciados da Detenção, num vai e vem incessante iam retirando os cadáveres que formavam pilhas e os que estavam nos caixões, atirando-os a uma comprida vala que estava além.

            – É a vala comum, disse o nosso cicerone. Quer ir ver?

            Um guarda deu-nos a cheirar um pouco de éter e fomos até lá. O fundo da vala já estava atapetado de cadáveres, alguns bem trajados. De quando em quando, os sentenciados para lá arremessavam mais um. Mas o que mais nos impressionou foi o cadáver de uma negrinha que ao ser arremessado foi cair justamente no colo de uma mulher… Era uma cena horripilante.

            Retiramo-nos. Era ali o quadro S1. Ao seguirmos por uma das ruas o nosso cicerone apontou-nos um caminhão que, cheio de cadáveres, a seis dias aguardava ser descarregado. Não era esse o único caso de cadáveres insepultos.

            Aqui e ali, viam-se caixões que não eram de indigentes, aguardando que os enterrassem. Quase à entrada do cemitério a nossa atenção foi despertada por um grupo de marujos. Eram da esquadra americana. Tinham ido sepultar três companheiros. A todo instante passavam mais defuntos, a maioria sem acompanhamentos nem grinaldas ou flores. Estavam neste último caso.

O ENTERRO DE UM JORNALISTA

            Um rapaz cheio de vida, bastante relacionado e que a gripe vitimou. Era Robespierre Trovão que trabalhou durante muitos anos na “Gazeta de Notícias” e na “A Notícia”, sócio da Associação de Imprensa, tendo sido secretário da empresa teatral Paschoal Segreto, posto esse em que a morte o foi surpreender.

            O seu enterro chegou ao cemitério no momento da nossa chegada. Foi num automóvel de praça e chegado ao portão principal, os sentenciados, três de cada lado, fazendo uma padiola com as alavancas de ferro, o transportaram. Ninguém atrás e o caixão era tão pobre, sem grinaldas ou flores, que nunca nos passou pela mente, ser o enterro de um colega, de um moço trabalhador, que devia ter amigos e colegas de profissão.

            E ignoraríamos se o seu irmão, avistando-nos, não nos tivesse chamado. Tão grande foi a surpresa e a dor que experimentamos que não acreditaríamos se não fosse o irmão do morto que o dissesse.

            Era o Robespierre Trovão. Dos seus muitos amigos, dos seus ex-colegas de jornal e pessoal de teatro onde ele vivia ultimamente mais nenhum o acompanhara até a morada final. Iria só, sozinho, se não fosse o irmão que para o transportar até o cemitério, foi preciso chamar um automóvel de praça e intimidar o “chauffeur”.

            O seu cadáver foi sepultado no quadro 49, sepultura 70.066.

NORMALIZAR-SE-Á HOJE O SERVIÇO DE ENTERRAMENTOS

            Da nossa visita ao cemitério constatamos que a providência do Sr. Ministro da Justiça, ocupando o cemitério do Caju e tomando a direção do serviço, deu o melhor resultado.

            Das últimas horas da tarde, de ontem até hoje às 9 horas da manhã foram enterrados 400 e poucos cadáveres que há muitos dias estavam abandonados. O número de cadáveres por enterrar anda em duzentos, de modo que hoje ficará normalizado o serviço conforme nos garantiu o Capitão Diniz.

            Os sentenciados têm trabalhado com grande atividade, entregando-se com dedicação a esse serviço penosíssimo.

            Como se vê só merece louvores a providência do Sr. Carlos Maximiliano, sendo de lastimar que igual ato não seja aplicado quanto a Santa Casa, o feudo do Sr. Miguel de Carvalho.

            Com a ocupação militar do Caju, lucrou a população e o governo, pois o serviço de enterramento não se atrasará mais, não ficando os cadáveres insepultos dias e dias como estava acontecendo.

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Um Castigo para tais Bandidos!

Policiais atiram um pobre velho sobre uma pilha de cadáveres!

            O que a polícia está fazendo em diversos pontos da cidade, notadamente na circunvizinhança da necrópole de S. Francisco Xavier constitui mais um atentado contra a população, que nada tem a ver com os erros da administração.

            Ficou evidenciado que o serviço funerário da Santa Casa, a despeito das vantagens que lhe outorga o governo, não presta para nada: no cemitério de S. Francisco Xavier, por falta de coveiros, centenas de corpos jazem atirados pelas alamedas ou empilhados sobre as campas, o que tornou necessária a intervenção oficial.

            No modo por que esta foi realizada é que reside o abuso: a polícia captura indivíduos de condição modesta, sejam eles velhos, debilitados pela gripe ou que seguem a buscar remédios para os seus, e os obriga a trabalhar na abertura de covas e sepultamento dos corpos.

            É por ocasião do “pega-pega” que se passam cenas degradantes. Praças da Brigada ou agentes de polícia, daqueles a quem a ignorância faz com que se presumam semideuses, na triste emergência, respondem com expressões chulas as razões dos capturados não sendo raro o emprego da espada e do cinturão contra os que justamente recalcitram.

            À porta do cemitério passou-se ontem uma dessas cenas, cujos autores mereciam ser vergalhados na presença da multidão.

            É o caso que um pobre homem, a quem a idade já pintou os cabelos, caminhava pela praia, a caminho de uma farmácia, quando, a certa altura foi abordado pelos policiais. Escusou-se, alegando ser convalescente da gripe, e além disso não ter mais forças para serviços tão pesados, como o de abrir sepulturas. Os perversos policiais vacilaram, fizeram uma espécie de concílio rápido, terminando por agarrarem o infeliz e atirarem-no sobre os cadáveres que se achavam empilhados em um vagão da Light- Estava saciado o instinto perverso e irreverente dos belequins. A sua vítima ficou apavorada e eles podiam rir, à socapa…

Jornal A Rua, # 290, de 25 de outubro de 1918.

Notas:

1Miguel Joaquim Ribeiro de Carvalho (1849-1944), político fluminense e provedor da Santa Casa de Misericórdia entre 1902 e 1938, foi senador pelo RJ entre 1915 e 1930. Cumpriu o maior período a frente desta instituição e à época da gripe foi duramente atacado pela imprensa carioca por ter deixado a situação do cemitério São Francisco Xavier ter chegado ao caos que alcançou. No dia 11 de outubro, quando a epidemia ganhava força e as mortes avolumavam-se, os coveiros declararam greve, exigindo 30 a 40% de aumento nos salários. No dia 23/10 o Ministro da Justiça Carlos Maximiliano decretou intervenção federal nos cemitérios do Caju até o dia 31/10. O jornal Correio da Manhã em sua edição se 24/10, estampava em sua capa: “O governo ocupou militarmente o cemitério do Caju, diante da dificuldades oferecidas pela Santa Casa para a inumação dos cadáveres”. Durante a epidemia, circulou pela cidade o boato (?) de que no hospital da Santa Casa, no Centro, para liberar espaço nos leitos, serviam aos doentes mais graves um “chá” que acelerava os óbitos, que ficou conhecido como o “chá da meia-noite”. Alguns jornais apelidaram a Santa Casa como a “Casa do Diabo”. A Santa Casa também foi acusada de cobrar fortunas para fazer sepultamentos e de priorizar aqueles que pagavam, deixando os pobres e indigentes apodrecerem em seus necrotérios e nos cemitérios da cidade. No dia 19 de outubro o Presidente da República, Wenceslau Braz, fez visita surpresa à Santa Casa de Misericórdia, encontrando situação dramática de superlotação, que foi explorada pelos jornais locais, especialmente o Correio da Manhã, que em sua edição de 20/10/1918 narrava: “É assombroso o acúmulo de gripados em tratamento na enfermaria das mulheres, que é a que está em piores condições de instalação, a impressão penosa não foi menor, os leitos são deficientíssimos. Pelo chão, os colchões espalhavam-se e, sobre estes, três e quatro doentes estão gemendo, deitadas. A promiscuidade é inacreditável. Atacadas do mesmo mal, umas respiram sobre as outras. No necrotério, o número de cadáveres é macabro. Cerca de 30 estavam esperando a vez de serem transportados para as sepulturas. Aqueles que têm quem lhes pague a inumação têm preferência…

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Detentos realizando sepultamentos no cemitério São Francisco Xavier, vigiados por soldado – outubro de 1918 (Foto de Emílio Rodriguez Rozas)

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Carro alegórico dos Democráticos no Carnaval de 1919, parodiando o temido “chá da meia-noite” (Revista Careta)

 

 IMPRESSÕES DE COVEIROS…

O QUE ELES VIRAM E FIZERAM NOS DIAS MACABROS

Alguns pagaram com a morte os serviços da morte…

            Têm se dito por aí tanta e tanta coisa, tem se propalado tão grande número de balelas que a se acreditar no que se diz, tem-se a impressão de que os homens que tão abnegadamente se vem entregando ao árduo trabalho de enterrar as infelizes vítimas da peste, são uns desalmados, indignos da nossa admiração.

            Contam-se fatos macabros, horripilantes, como esse de um coveiro que ao ouvir partir, de uma pilha de cadáveres putrefatos, uma voz fraca suplicando água, levantou a pá, deixando-a cair pesadamente sobre a cabeça do “morto-vivo”, esfacelando-a.

            Ao se narrar o fato, não há ninguém que se mostre insensível, ficando horrorizado com essa selvageria.

            Foi sob essa impressão que entramos hoje no cemitério do Caju, nos outros anos tão movimentado no dia de hoje, sem ninguém, absolutamente sem ninguém, salvo o pessoal a quem foi confiada a missão de enterrar os mortos…

            Não se fez este ano a tradicional romaria ao Campo Santo e a população, receosa de ver o aspecto do cemitério ou por obediência às ordens do governo, pareceu-nos conformada com essa resolução.

            De cada lado do largo portão, soldados da Brigada Policial postaram guarda. Entramos. O capitão Diniz, sob quem corre atualmente a direção do Caju, sempre solicito e ativo, veio ao nosso encontro. Palestrávamos sobro os serviços que correm com a maior regularidade, quando avistamos o Cyrillo.

            De estatura regular e fisionomia simpática, o detento que chefia a turma de presidiários da Casa do Detenção, encarregada do serviço de abrir covas, palestrava com os companheiros. Manifestamos desejo de falar-lhe e o capitão Diniz, aquiescendo, chamou-o, retirando-se.

IMPRESSÕES DE COVEIRO…

            Falando desembaraçadamente, o Cyrillo manifestou-se logo grato à imprensa, reconhecendo o serviço que prestaram os presidiários da Correção e Detenção, pedindo-nos, porém, que desmentíssemos o que se propalava na cidade, sobre fatos ocorridos no Caju. E, rindo, o Cyrillo exclamou:

            – Fantasia! Pura fantasia…

            – Mas, propala-se tanta coisa…

            – Como a do “morto” que pediu água e o coveiro lhe deu com a pá? Mentira. Tudo mentira. A RUA, aliás o único jornal que esteve aqui nos dias em que os cadáveres estavam por aí empilhados, se tivesse ocorrido semelhante fato, teria tido conhecimento. Tudo correu bem e se algum vivo houvesse, nós que não somos homens livres, temos, porém, coração e nos apiedaríamos de qualquer infeliz que viesse com vida misturado entre os cadáveres que dezenas e dezenas de caminhões aqui aglomeraram…

            Já então estávamos cercados por meia dúzia de presidiários que confirmavam as declarações do Cyrillo.

            Perguntamos-lhe pelas suas impressões…

            Disse-nos que foram horríveis!

            Ele o os seus companheiros, ao transpor, pela primeira vez, o portão do cemitério, ficaram horrorizados.

            Os caixões, empilhados, iam desde o portão até o Cruzeiro. O necrotério completamente cheio, e aqui e ali caminhões atulhados de cadáveres em decomposição. Uma fedentina insuportável e moscas em quantidade como nunca viu! Estava tudo abandonado!

            E acrescentou:

            – Também não hesitamos e fomos logo trabalhando. Alguns ainda se muniram de desinfetantes e enquanto uma parte era desviada para o serviço de abrir covas, eu e outros começamos a remover os caixões.

UM MOMENTO DE HORROR

            As moscas nos atormentavam. Junto ao Necrotério havia um esguicho de desinfecção. Muni-me desse aparelho e entrei a esguichar sobre os caixões que se enfileiravam, aos montes, desde o portão até ao Cruzeiro. Chegado ao Necrotério, quando entrei, respirando o ar empestado, as moscas que atordoam, pois com o desinfetante abandonavam os cadáveres. Como alguém me chamasse na ocasião em que abria a boca para falar, engoli duas, pois eram em quantidade espantosa! Só então tive medo… Hesitei em continuar, mas, como faltasse pouco, conclui o serviço e fui até a portaria. Pedi um copo, um limão e álcool e bebi tudo isso. Chegado à Detenção, pedi um purgante e no outro dia voltei no trabalho, ainda estando hoje são e salvo…

A VALA COMUM

            O Cyrillo passou então a referir-se à vala comum.

            Disse-nos ter sido o único recurso do momento. Havia cadáveres abandonados a 8 dias. Era tal a confusão, tão grande a balbúrdia, devido ao relaxamento da Santa Casa, que muitos defuntos de classe foram para a vala comum e outros foram enterrados em sepulturas que não lhes eram destinadas. Como nos mostrássemos admirados, o Cyrillo explicou:

            – É que o pessoal do cemitério, além de não ter posto o número das sepultaras nos caixões, deixou-os aglomerar de tal forma e demorar tantos dias de modo que se tornou impossível saber de quem eram e onde deviam ser enterrados. Assim mesmo, ainda conseguimos enterrar muitos defuntos de classe nos respectivos lugares. Na vala comum foram enterrados muitos outros. As valas são da altura de um homem e os cadáveres não estão à flor da terra, como se diz. Têm mais de meio metro de terra em cima. Não se pode desejar melhor serviço. Só quem esteve aqui no primeiro dia e pôde ver mais de mil cadáveres insepultos, pode fazer ideia do nosso esforço que, se não me custou a vida, levou cinco dos meus companheiros. Morreram, porém, depois de prestarem bons serviços.

            Como lhe perguntássemos se estavam satisfeitos, responderam afirmativamente e que o Coronel Meira Lima os tem tratado muito bem. Quando chegam à Detenção, são desinfectados, tomam banho; sendo-lhes servida uma boa alimentação.

OS DETENTOS COVEIROS E AS SUAS PENAS

            Depois de palestrarmos longamente, tocamos nas penas que estavam cumprindo na Detenção. O Cyrillo, esse já foi indultado. Tendo feito mal a uma moça, apesar do ter querido casar, coisa a que se opôs o pai da mesma, foi condenado.

            A moça – disse-nos o Cyrillo – casou depois com um empregado do pai…!

DE PREVENÇÃO

            Pela manhã achavam-se abertas, prontas para receber cadáveres:

            No quadro 64 (anjos), 50 sepulturas.

            No quadro 58 (anjos), 50 sepulturas.

            No quadro 52 (adultos), 83 sepulturas.

            No quadro 49 (adultos) 83 sepulturas.

            No quadro 07 (adultos), 200 sepulturas.

            Para Indigentes:

            Quadro 85 (anjos), 19.

            Quadro 83 – Quatro e meia valas, correspondendo cada uma a 85 metros de comprido por 2 metros de largura.

Jornal A Rua, # 296, 1º de novembro de 1918